Angra: teu nome é Liberdade
Autor: Joel Neto
«Angra verdadeira coroada de trabalho de sofrimento/» – escreveu o poeta – «senhora de nunca sabida crónica esquecida de teu povo/ de formigueiros imperscrutáveis que correm no sigilo de teu sangue/ minha pequena cidade cosmopolita/ metrópole infindável de aventuras e sonhos de maré.»
Pois essa Angra que Marcolino Candeias cantou – e que Santos Barros, e Emanuel Félix, e Álamo Oliveira, e tantos outros cantaram – junta-se em 2024 às grandes e pequenas cidades, vilas e aldeias de todo o país para celebrar a democracia. Nada menos do que os primeiros 50 anos do 25 de Abril, o mais longo período de paz e prosperidade da história de Portugal e, ao mesmo tempo, a insofismável origem da autonomia dos Açores.
E celebra-os com não pouca propriedade. Uma das casas do liberalismo iluminista nacional, cidade republicana, exultantemente interclassista e irredutivelmente popular, Angra do Heroísmo foi sempre não apenas um lugar de chegadas e partidas, caloroso e mundividente, mas uma urbe de progresso e de mudança.
Do seu traçado saíram a arquitectura e o urbanismo que as grandes navegações disseminaram pelo mundo e pelas florestas à sua volta espalha-se a flora que trouxeram de volta. Nas veias do seu povo corre sangue ibérico, flamengo, africano. Nos seus dúbios cárceres viveram como no paraíso prisioneiros portugueses, moçambicanos ou alemães. Na sua gastronomia estão os sabores da Índia, da Jamaica e do Brasil.
Escolheu sempre incluir, Angra, e acarinhou a diferença como poucas – inclusive quando era mais difícil. Como em Ode a Angra Minha Cidade em Tom de Elegia, mais uma vez: «Todos os teus empregados sindicalizados e/ não sindicalizados tuas empregadas/ domésticas muitas delas/ raparigos extremosos e prendadíssimos/ que esta sim é tua verdadeira memória/ é tua grande e presente memória de necessitados/ e oprimidos/ memória presente de todos os outros que vivem apagadamente/ de um ordenado menor de gente menor/ e esquecida na soleira da porta.»
Ah, Angra da poesia e da literatura. Angra da Europa e da civilização. Angra do mundo. Angra subversiva. Angra do Espírito Santo. Angra de Brianda Pereira. Angra do Carnaval. Angra de Abril – «Minha cidade de arredores bem/ São Carlos de quintas e laranjais/ cidade minha de arredores mal/ São Mateus da Calheta cheio de vendas e pescadores./ Oh Angra cidade única e minha/ cidade de nevoeiro encantado / silenciosa/ memória alongando-se pela bruma esvanecendo-se/ já não de D. Pedro IV mas tu cidade/ em ti própria renascida outra memória/ verdadeiramente tua/ a de/ teus marginais/ a de/ teus infelizes operários teus pescadores do Corpo Santo/ teus esfumados reformados em seus passos mudos/ teus engraxadores rezingões sumidos na insignificância.»
Ah, Angra – mui nobre, leal, sempre constante e sobre as demais livre cidade de Angra do Heroísmo. «Minha mistura de pirolito e vinho de cheiro/ craca de cinco bicos na lapa da baía nascida/ cálice meu perfumado/ de aguardente da terra/ massa sovada e suada/ no alguidar de teu rosto.» Angra da liberdade. Celebremo-las a ambas, a uma e a outra. Que mais poderíamos fazer, «nesta terra cidade minha meu povo/ a nossos corpos a nossas mãos a nossos braços/ diante deste espaço de ondas inquietas?»